Muitas vezes ouvi a expressão Jogo Erótico para definir as práticas realizadas no BDSM. E tenho que admitir que há uma precisão nesta expressão. Em uma cena de bondage, disciplina ou sadismo/masoquismo, sempre 'algo' está em jogo.
Consultando as teorias sobre jogo de H. Zondervan, encontramos vários conceitos que tentam definir as origens e os fundamentos do jogo. Mas todas partem do mesmo pressuposto: o jogo se acha ligado a alguma coisa que não exatamente o jogo. Todo bom jogador sabe e sente isso.
A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nesse fascínio, nessa capacidade de excitação que está a essência e característica principal do jogo.
A natureza podia nos ter oferecido outros caminhos para as descargas de energia, para a preparação às exigências da vida - no que se refere à compensação de desejos não satisfeitos -, mas ela ofereceu a tensão, a alegria, o divertimento e o prazer do jogo, que nos permitem elaborar modelos para a vida real, pessoal e social.
Que modelos buscamos nos jogos eróticos? O que nosso mundo interior procurar elaborar a partir deles?
Quando jogamos, acreditamos naquela realidade como autônoma; ela encerra um mundo em si mesma. Uma possibilidade de estar sendo, sem ser o tempo inteiro.
Ao se jogar se estabelece uma ordem na imperfeição do mundo, uma perfeição temporária e limitada.
Será que o BDSM por lidar com tanta intimidade e tentar ordenar a relação de poder pode estar 'ameaçando' de alguma forma as questões sociais e políticas do poder constituído a serviço do sistema?
O que o homem fez ao elaborar a linguagem? Veja, de uma maneira ou de outra, ao dar expressão à vida, o homem criou um outro mundo que melhor o ajudasse a compreender o que e onde ele vive.
Será que o BDSM não participa deste mesmo princípio?
"O jogo é fundamentalmente um símbolo de luta, luta contra a morte." (Dicionário dos Símbolos)
Os mitos são outro exemplo, bem mais elaborados, da capacidade de transformação de uma "imaginação" do mundo exterior pelo homem.
Se BDSM é jogo erótico não deveria representar risco. Jogo, afinal, não é brincadeira? Diversão?
Percebemos que jogos comuns, como o xadrez, o nosso futebol e mesmo os jogos feitos pelas crianças, são realizados dentro da mais profunda seriedade, não se vê nos participantes a menor tendência para o riso ou descaso.
Claro, isso varia de jogador para jogador. Ocorre o mesmo entre os praticantes do BDSM.
(Talvez o problema seja não limitarmos nossos "brinquedos" a um tabuleiro de xadrez, com suas pecinhas tão interessantes ou a uma simples bola... risos)
"... O jogo é por si só um universo no qual através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar. O jogo não é apenas a atividade específica que leva o seu nome, mas ainda a totalidade das figuras, dos símbolos ou dos instrumentos necessários a essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo." (Dicionários dos Símbolos)
Quando chamamos uma comédia ou uma farsa de "cômica", fazemos referência a situação e aos pensamentos ali expressos, e não ao jogo da representação.
Como uma cena BDSM, o jogo está repleto de ritmo, harmonia, vivacidade. O jogo é livre, pelo fato dele próprio ser liberdade. O jogo é uma atividade voluntária; sujeito a ordens, deixa de ser jogo. (Como no BDSM, se forçássemos alguém que não aprecia a participar de uma cena de spanking ela deixaria de ser uma cena, passaria a quebrar todas as regras de SSC. Estaria se tornando uma legítima vítima, digna de estar na galeria dos personagens do Marquês de Sade. Estaria sendo submetida apenas à violência, à coação.)
Para uma pessoa adulta e responsável o jogo poderia ser completamente dispensável.
Mas por que não acabam com os campeonatos de xadrez? E por que o BDSM não é tratado pelos seus adeptos como algo supérfluo?
Tem-se uma necessidade urgente do prazer por ele proporcionado, transformando-o em necessidade.
O jogo jamais é imposto pela necessidade física ou por dever moral. É possível adiá-lo ou suspendê-lo a qualquer momento. Não é tarefa. Liga-se à noção de obrigação e é dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto ou ritual.
Mas, uma coisa é certa, o jogo não é vida corrente ou vida real. É uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.
Costuma-se dizer que jogos são tensos. Tensão significa incerteza, acaso e emoção. O jogador quer acabar com a tensão.
Que tensão queremos encerrar ao nos envolvermos nos jogos eróticos do BDSM?
Embora o jogo, enquanto jogo, esteja para além do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida que está se colocando em prova as qualidades do jogador: seja habilidade e técnica ou coragem e tenacidade.
E, apesar de nosso tremendo desejo de "ganhar" o jogo, de satisfazermos nosso desejo, de darmos vazão à tensão... temos que seguir as regras. A desobediência às regras implica na derrocada de toda imaginação... O jogo acaba, o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida real recomeça.
Um jogador que ignore as regras, é um "desmancha- prazeres". E há os que fingem jogar honestamente, fingem seguir as regras, mas não o fazem. São os "desonestos".
Engraçado perceber que tanto num jogo convencional, quanto no BDSM, aceitamos com mais facilidade o jogador que é desonesto... mas não toleramos o "desmancha-prazeres". Provavelmente pelo fato do "desonesto" aparentar reconhecer o círculo mágico do jogo e o "desmancha- prazeres" abalar a existência ou continuidade do jogo. Felizmente, nenhum dos dois está apto a integrar uma comunidade permanente, mesmo depois de acabado o jogo.
Quando partimos para uma cena BDSM, ou uma Play Party, vemos repetir-se mais uma das características do jogo: o ar de mistério. É difícil para um novo "jogador" dar este passo. Fazemos do jogo um segredo. E o encanto do jogo aumenta por isso. Fazer dele um segredo é, no mínimo, conferir-lhe ilusão... (palavra cheia de sentido que significa "em jogo"- de inlusio, illudere ou inludere).
As comunidades de "jogadores" tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. A sensação de estar separadamente juntos, numa situação excepcional, de partilhar algo importante afastando-se das regras habituais, conserva sua magia para além da duração do jogo.
O encanto do BDSM está, sem dúvida, na mágica de nos transportar para longe de nosso "eu" cotidiano, sem contudo nos deixar perder inteiramente o sentido da "realidade habitual". A qualquer momento é possível à vida quotidiana reafirmar seus direitos, seja devido a um 'impacto exterior' que venha interromper o jogo, por um afrouxamento das intenç&oatilde;es, uma perda do espírito do jogo, uma desilusão ou desencantamento ou devido a uma quebra das regras.
O BDSM esbarra, necessariamente, em valores morais, que implicam na noção do binômio vício-virtude.
Mas o conceito de jogo, enquanto atividade não material, não desempenha função moral.
Ora, se o jogo, como nas fantasias sexuais, se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa imaginação da realidade (ou seja, a transformação desta imaginação em realidade), nossa preocupação deverá voltar-se para o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação".
Sendo assim, o BDSM pode ser tratado como fenômeno cultural? Será que o BDSM não é uma forma de expressão de uma sexualidade que só escandaliza por estar vinculada a uma "estética" ainda não compreendida ?
Mas é importante notar que o jogo erótico deixa sempre transparecer a espontaneidade mais profunda, as reaç&oatilde;es mais pessoais às press&oatilde;es de nossa vida externa, e talvez aí resida sua complexidade.
Bem, esse foi apenas mais um exercício de reflexão sobre a natureza e significado do jogo para o BDSM, aliás, com mais questionamentos do que afirmaç&oatilde;es, uma tentativa de situar o BDSM para além dos parâmetros da 'doença' ou 'anormalidade'. Talvez, juntando mais elementos possamos começar a formar as bases que levem à compreensão dessa prática e de nós mesmos!
Consultando as teorias sobre jogo de H. Zondervan, encontramos vários conceitos que tentam definir as origens e os fundamentos do jogo. Mas todas partem do mesmo pressuposto: o jogo se acha ligado a alguma coisa que não exatamente o jogo. Todo bom jogador sabe e sente isso.
A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nesse fascínio, nessa capacidade de excitação que está a essência e característica principal do jogo.
A natureza podia nos ter oferecido outros caminhos para as descargas de energia, para a preparação às exigências da vida - no que se refere à compensação de desejos não satisfeitos -, mas ela ofereceu a tensão, a alegria, o divertimento e o prazer do jogo, que nos permitem elaborar modelos para a vida real, pessoal e social.
Que modelos buscamos nos jogos eróticos? O que nosso mundo interior procurar elaborar a partir deles?
Quando jogamos, acreditamos naquela realidade como autônoma; ela encerra um mundo em si mesma. Uma possibilidade de estar sendo, sem ser o tempo inteiro.
Ao se jogar se estabelece uma ordem na imperfeição do mundo, uma perfeição temporária e limitada.
Será que o BDSM por lidar com tanta intimidade e tentar ordenar a relação de poder pode estar 'ameaçando' de alguma forma as questões sociais e políticas do poder constituído a serviço do sistema?
O que o homem fez ao elaborar a linguagem? Veja, de uma maneira ou de outra, ao dar expressão à vida, o homem criou um outro mundo que melhor o ajudasse a compreender o que e onde ele vive.
Será que o BDSM não participa deste mesmo princípio?
"O jogo é fundamentalmente um símbolo de luta, luta contra a morte." (Dicionário dos Símbolos)
Os mitos são outro exemplo, bem mais elaborados, da capacidade de transformação de uma "imaginação" do mundo exterior pelo homem.
Se BDSM é jogo erótico não deveria representar risco. Jogo, afinal, não é brincadeira? Diversão?
Percebemos que jogos comuns, como o xadrez, o nosso futebol e mesmo os jogos feitos pelas crianças, são realizados dentro da mais profunda seriedade, não se vê nos participantes a menor tendência para o riso ou descaso.
Claro, isso varia de jogador para jogador. Ocorre o mesmo entre os praticantes do BDSM.
(Talvez o problema seja não limitarmos nossos "brinquedos" a um tabuleiro de xadrez, com suas pecinhas tão interessantes ou a uma simples bola... risos)
"... O jogo é por si só um universo no qual através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar. O jogo não é apenas a atividade específica que leva o seu nome, mas ainda a totalidade das figuras, dos símbolos ou dos instrumentos necessários a essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo." (Dicionários dos Símbolos)
Quando chamamos uma comédia ou uma farsa de "cômica", fazemos referência a situação e aos pensamentos ali expressos, e não ao jogo da representação.
Como uma cena BDSM, o jogo está repleto de ritmo, harmonia, vivacidade. O jogo é livre, pelo fato dele próprio ser liberdade. O jogo é uma atividade voluntária; sujeito a ordens, deixa de ser jogo. (Como no BDSM, se forçássemos alguém que não aprecia a participar de uma cena de spanking ela deixaria de ser uma cena, passaria a quebrar todas as regras de SSC. Estaria se tornando uma legítima vítima, digna de estar na galeria dos personagens do Marquês de Sade. Estaria sendo submetida apenas à violência, à coação.)
Para uma pessoa adulta e responsável o jogo poderia ser completamente dispensável.
Mas por que não acabam com os campeonatos de xadrez? E por que o BDSM não é tratado pelos seus adeptos como algo supérfluo?
Tem-se uma necessidade urgente do prazer por ele proporcionado, transformando-o em necessidade.
O jogo jamais é imposto pela necessidade física ou por dever moral. É possível adiá-lo ou suspendê-lo a qualquer momento. Não é tarefa. Liga-se à noção de obrigação e é dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto ou ritual.
Mas, uma coisa é certa, o jogo não é vida corrente ou vida real. É uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.
Costuma-se dizer que jogos são tensos. Tensão significa incerteza, acaso e emoção. O jogador quer acabar com a tensão.
Que tensão queremos encerrar ao nos envolvermos nos jogos eróticos do BDSM?
Embora o jogo, enquanto jogo, esteja para além do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida que está se colocando em prova as qualidades do jogador: seja habilidade e técnica ou coragem e tenacidade.
E, apesar de nosso tremendo desejo de "ganhar" o jogo, de satisfazermos nosso desejo, de darmos vazão à tensão... temos que seguir as regras. A desobediência às regras implica na derrocada de toda imaginação... O jogo acaba, o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida real recomeça.
Um jogador que ignore as regras, é um "desmancha- prazeres". E há os que fingem jogar honestamente, fingem seguir as regras, mas não o fazem. São os "desonestos".
Engraçado perceber que tanto num jogo convencional, quanto no BDSM, aceitamos com mais facilidade o jogador que é desonesto... mas não toleramos o "desmancha-prazeres". Provavelmente pelo fato do "desonesto" aparentar reconhecer o círculo mágico do jogo e o "desmancha- prazeres" abalar a existência ou continuidade do jogo. Felizmente, nenhum dos dois está apto a integrar uma comunidade permanente, mesmo depois de acabado o jogo.
Quando partimos para uma cena BDSM, ou uma Play Party, vemos repetir-se mais uma das características do jogo: o ar de mistério. É difícil para um novo "jogador" dar este passo. Fazemos do jogo um segredo. E o encanto do jogo aumenta por isso. Fazer dele um segredo é, no mínimo, conferir-lhe ilusão... (palavra cheia de sentido que significa "em jogo"- de inlusio, illudere ou inludere).
As comunidades de "jogadores" tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. A sensação de estar separadamente juntos, numa situação excepcional, de partilhar algo importante afastando-se das regras habituais, conserva sua magia para além da duração do jogo.
O encanto do BDSM está, sem dúvida, na mágica de nos transportar para longe de nosso "eu" cotidiano, sem contudo nos deixar perder inteiramente o sentido da "realidade habitual". A qualquer momento é possível à vida quotidiana reafirmar seus direitos, seja devido a um 'impacto exterior' que venha interromper o jogo, por um afrouxamento das intenç&oatilde;es, uma perda do espírito do jogo, uma desilusão ou desencantamento ou devido a uma quebra das regras.
O BDSM esbarra, necessariamente, em valores morais, que implicam na noção do binômio vício-virtude.
Mas o conceito de jogo, enquanto atividade não material, não desempenha função moral.
Ora, se o jogo, como nas fantasias sexuais, se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa imaginação da realidade (ou seja, a transformação desta imaginação em realidade), nossa preocupação deverá voltar-se para o valor e o significado dessas imagens e dessa "imaginação".
Sendo assim, o BDSM pode ser tratado como fenômeno cultural? Será que o BDSM não é uma forma de expressão de uma sexualidade que só escandaliza por estar vinculada a uma "estética" ainda não compreendida ?
Mas é importante notar que o jogo erótico deixa sempre transparecer a espontaneidade mais profunda, as reaç&oatilde;es mais pessoais às press&oatilde;es de nossa vida externa, e talvez aí resida sua complexidade.
Bem, esse foi apenas mais um exercício de reflexão sobre a natureza e significado do jogo para o BDSM, aliás, com mais questionamentos do que afirmaç&oatilde;es, uma tentativa de situar o BDSM para além dos parâmetros da 'doença' ou 'anormalidade'. Talvez, juntando mais elementos possamos começar a formar as bases que levem à compreensão dessa prática e de nós mesmos!
"Eu vivo bem o século que passa.
Sente-se o vento de uma folha imensa
Escrita por deus, e por ti e por mim,
De mãos estranhas a pender suspensa.
Percebe-se o clarão de uma página nova,
Sobre a qual tudo pode vir a ser.
As calmas forças testam-lhe a extensão
E trocam olhares na escuridão."
Rainer Maria Rilke, O Livro das Horas
Sente-se o vento de uma folha imensa
Escrita por deus, e por ti e por mim,
De mãos estranhas a pender suspensa.
Percebe-se o clarão de uma página nova,
Sobre a qual tudo pode vir a ser.
As calmas forças testam-lhe a extensão
E trocam olhares na escuridão."
Rainer Maria Rilke, O Livro das Horas
Publicado originalmente em Desejo Secreto
(http://www.desejosecreto.com.br/teoria/teoria12.htm)
uii qnta coisa. ameii.
ResponderExcluirbjosss...
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