Para o Zé
(Adélia Prado)
(em Poesia Reunida,
Editora Siciliano, S.Paulo, 1991, p.99)
“Eu te amo, homem,
hoje como
toda vida quis e não
sabia,
eu que já amava de
extremoso amor
o peixe, a mala velha,
o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um
peixe — os
lábios carnudos como
os de uma negra.
Divago, quando o que
quero é só dizer
te amo. Teço as
curvas, as mistas
e as quebradas,
industriosa como abelha,
alegrinha como
florinha amarela, desejando
as finuras,
violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o
ouvido no teu peito
pra escutar o que
bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que
é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna
e flora,
seu poder de perecer,
as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que
habitamos, os fios
de tua barba. Esmero.
Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me
calo, falo em latim pra requintar meu gosto
Aprendo. Te aprendo,
homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo
com a memória, imperecível.
Te alinho junto das
coisas que falam
uma coisa só: Deus é
amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da
guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar
desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma
tarefa, me emprega,
me dá um filho,
comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem,
exatamente como amo o que
acontece quando escuto
oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando
aquecido, dando a volta ao mundo,
estalando os dedos pra
pessoa e bicho.
Amo até a barata,
quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer
amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo
mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular
homem universal.
Tudo que não é mulher
está em ti, maravilha.
Como grande senhora
vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o
abajur de prata;
como criada ama, vou
te amar, o delicioso amor:
com água tépida,
toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus
pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.
Calma! Você não lerá
um artigo acadêmico por dois motivos: aqui não é o espaço e não tenho cabedal
para fazê-lo. Vou apenas tentar compilar algumas coisas que eu escrevei para ninguém
ler e o tanto que está em minha cabeça à partir de algumas experiências D/s que
vivo.
Porque chamar essa
série de reflexões de “Cela de Veludo”? Primeiramente porque o poema lindíssimo
de Adélia Prado trata muito de submissão e, como é (ou deveria ser) regra, uma
submissão voluntária como pode-se facilmente notar. Em segundo lugar, porque é
uma cela confortável, que não tem a intenção de provocar um dano físico ou
mental de alguma monta.
Como acredito ter
esboçado na minha primeira intervenção, o poema é reconhecidamente “submisso”,
estando a palavra entre aspas por uma assunção de que no “diálogo amoroso” não
deveria importar (ao menos idealmente) um exercício de poder explícito mas
eventualmente construído na dinâmica das relações.
Tudo muito bem, tudo
muito bom mas Janus, o que tem isso a ver com o BDSM? – podem dizer os mais
apressados. Apesar do que há de peculiar no relacionamento amoroso comum
(baunilha?) e no relacionamento Dominador(a)/submisso(a)? Para mim ambos
guardam, no fundo, grandes similaridades e igualmente grandes diferenças.
A primeira
similaridade, ao meu ver, refere-se ao processo de sedução. Por mais que
possamos (queremos?) negar, o processo de “negociação” é na verdade um processo
de sedução baseado em características de personalidade pré-existentes e que
começam a ser construídas/reconstruídas e/ou moldadas durante esse mergulho no
mundo do fetiche.
Um parêntese: tenho
visto muitas intervenções em várias comunidades, discutindo se a submissão é
construída ou conquistada do submisso(a). Dentro da minha experiência, vejo que
a submissão, no BDSM, é uma expressão sistematizada de algo que sempre esteve
presente na personalidade do submisso, algo que os psicólogos e demais
profissionais de áreas afins podem explicar com mais competência do que eu e
acredito piamente que o mesmo valha para os Dominadores(as).
Isso ao meu ver, tem
implicações fáceis de serem previstas mas que não tenho visto serem enunciadas:
há um processo legítimo de “enamoramento” do Dominador(a) por seu submisso(a).
Isso não é novidade? Ufa! Que bom! É novidade? Vamos expandir um pouquinho.
Deve dar calafrios em
determinadas pessoas saberem que de repente se enamoraram de seus parceiros
BDSM. Isso é rendição ao “baunilhismo”? De forma alguma.
Recorro ao meu
“Velhíssimo Dicionário da Língua Brasileira” para achar a significação do verbo
“enamorar” e encontro:
“ENAMORAR, v.t.
Encantar; enfeitiçar; apaixonar; p. Deixar-se possuir por amor; apaixonar-se;
enlevar-se”.
Uia! “Deixar-se
possuir por amor”??? Caraca! Porque não “deixar-se possuir pelo desejo” ou
“deixar-se possuir-se pelo fetiche” ou finalmente “deixar-se possuir-se pela
entrega”? Será que invalida o argumento trocar as palavras? Ao meu ver, não,
muito pelo contrário, porque deixar-se possuir é entregar-se (mesmo vocês
senhores e senhoras Dominadores e Dominadoras!!!!!). No caso do submisso, essa
entrega ocorre no universo do servir e no caso dos (das) Dominadores(as) no
receber o gesto de servir.
Sei que muitos vão
“torcer o bico” ao ler essa frase mas ao menos para mim, é o que acontece.
Mesmo o mais sádico dos dominadores (as) sofrem ou são agentes de um processo
de sedução que leva ao enamoramento versão BDSM.
O mais importante é
assumir , e não vejo nenhum problema nisso, que somos enamorados de nossos(as)
submissos(as) em diversos graus de envolvimento. Assim é a vida e não há porque
negá-la.
PASTOREANDO NOS CAMPOS
BDSMISTAS
Se não é tão ofensivo
ao nossos pudores e conceitos que nos apaixonamos e nos envolvemos com nossos
parceiros BDSMistas , vai ficar mais fácil a gente ver o grande contato que há
do poema baunilha com os nosso processos de negociação e vivência dentro do BDSM.
Com certeza o “José”
do poema é um homem poderoso em sua sutileza e na expressão do seu amor à
personagem do poema. Não podemos perceber (ao menos eu não percebo) nenhum
sinal de sofrimento ou de dor , ao contrário, transmite-se uma sensação de
plenitude que faz com que a personagem viva em intensidade o bem-querer à ponto
de colocar-se de “joelhos” ante ao objeto (ops!) de seu amor.
Como já disse
anteriormente, a personagem coloca o seu amado em uma altar, há uma
sacralização dele de forma inquestionável. A frase do poema “Te alinho junto
das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor”, vai além dos limites
simplistas de uma relação amorosa e coloca no amado a potência de proporcionar
não apenas a felicidade mas a “redenção” através dessa experiência, transcendendo
os níveis “normais” de uma relação, tocando outra poetisa fantástica, Florbela
Espanca, no seu fabuloso poema “Fanatismo” onde ela declara mais
explicitamente: “Por que és como Deus, princípio e fim”.
Nesses casos,
detecta-se no amado a capacidade de prover o “manjar dos deuses”, o “Maná do
deserto”, donde obtém-se a graça (no sentido religioso) e o favor
indispensáveis à plenitude de quem ama, portanto, legitimando o servir.
Ops! Cheirinho de BDSM
no ar? Huuuuuuuuuum… Estou aqui curtindo-o! Cheiro doce da construção da
submissão através da “exposição” (muitas vezes nem tão exposta assim) de um
“plano de vôo” que faz subir aos céus, mesmo experimentando uma sessãozinha
hard de spanking…rs…
Se o exposto está
minimamente coerente, podemos escrever assim: “A relação D/s constituí-se de um
processo de sedução onde o(a) submisso(a) coloca o seu Dominador(a) como o
único agente que pode, não apenas usufruir de sua submissão, mas de
justificá-la, legitimá-la e dar-lhe corpo.
Os cariocas como a
Helena diriam: “Que responsa, mermão!!!” Pois é! Pois é! Não vou nem dizer que
ser Dominador é mais fácil do que ser submisso porque sei que essa discussão
não tem pé nem cabeça até porque , como diria Caetano Veloso, “cada um sabe a
dor e a delícia de ser o que é”, uma frase lapidar. No entanto, isso pode
suscitar uma discussão (em outro lugar e momento) se os Dominadores(as) e
submissos(as) sabem realmente com o que estão lidando, a responsabilidade e
gravidade de cada gesto e/ou atitude tomada.
Se é verdade que a
personagem do poema de Adélia é indiscutivelmente submissa e o José um
Dominador, convém examinar algumas pistas do caráter da relação que constróem.
(continua)
Amar e seduzir é todo um discurso com possíveis explicações, cujo o ato em si dele ninguém consegue se ausentar. Ver Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes.
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