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sábado, 24 de março de 2012

Cela de veludo: considerações sobre as relações D/s à partir de um poema de Adélia Prado (Parte 1)


Para o Zé

(Adélia Prado)

(em Poesia Reunida, Editora Siciliano, S.Paulo, 1991, p.99)

“Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo,
estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Calma! Você não lerá um artigo acadêmico por dois motivos: aqui não é o espaço e não tenho cabedal para fazê-lo. Vou apenas tentar compilar algumas coisas que eu escrevei para ninguém ler e o tanto que está em minha cabeça à partir de algumas experiências D/s que vivo.
Porque chamar essa série de reflexões de “Cela de Veludo”? Primeiramente porque o poema lindíssimo de Adélia Prado trata muito de submissão e, como é (ou deveria ser) regra, uma submissão voluntária como pode-se facilmente notar. Em segundo lugar, porque é uma cela confortável, que não tem a intenção de provocar um dano físico ou mental de alguma monta.
Como acredito ter esboçado na minha primeira intervenção, o poema é reconhecidamente “submisso”, estando a palavra entre aspas por uma assunção de que no “diálogo amoroso” não deveria importar (ao menos idealmente) um exercício de poder explícito mas eventualmente construído na dinâmica das relações.
Tudo muito bem, tudo muito bom mas Janus, o que tem isso a ver com o BDSM? – podem dizer os mais apressados. Apesar do que há de peculiar no relacionamento amoroso comum (baunilha?) e no relacionamento Dominador(a)/submisso(a)? Para mim ambos guardam, no fundo, grandes similaridades e igualmente grandes diferenças.
A primeira similaridade, ao meu ver, refere-se ao processo de sedução. Por mais que possamos (queremos?) negar, o processo de “negociação” é na verdade um processo de sedução baseado em características de personalidade pré-existentes e que começam a ser construídas/reconstruídas e/ou moldadas durante esse mergulho no mundo do fetiche.

Um parêntese: tenho visto muitas intervenções em várias comunidades, discutindo se a submissão é construída ou conquistada do submisso(a). Dentro da minha experiência, vejo que a submissão, no BDSM, é uma expressão sistematizada de algo que sempre esteve presente na personalidade do submisso, algo que os psicólogos e demais profissionais de áreas afins podem explicar com mais competência do que eu e acredito piamente que o mesmo valha para os Dominadores(as).
Isso ao meu ver, tem implicações fáceis de serem previstas mas que não tenho visto serem enunciadas: há um processo legítimo de “enamoramento” do Dominador(a) por seu submisso(a). Isso não é novidade? Ufa! Que bom! É novidade? Vamos expandir um pouquinho.
Deve dar calafrios em determinadas pessoas saberem que de repente se enamoraram de seus parceiros BDSM. Isso é rendição ao “baunilhismo”? De forma alguma.
Recorro ao meu “Velhíssimo Dicionário da Língua Brasileira” para achar a significação do verbo “enamorar” e encontro:

“ENAMORAR, v.t. Encantar; enfeitiçar; apaixonar; p. Deixar-se possuir por amor; apaixonar-se; enlevar-se”.

Uia! “Deixar-se possuir por amor”??? Caraca! Porque não “deixar-se possuir pelo desejo” ou “deixar-se possuir-se pelo fetiche” ou finalmente “deixar-se possuir-se pela entrega”? Será que invalida o argumento trocar as palavras? Ao meu ver, não, muito pelo contrário, porque deixar-se possuir é entregar-se (mesmo vocês senhores e senhoras Dominadores e Dominadoras!!!!!). No caso do submisso, essa entrega ocorre no universo do servir e no caso dos (das) Dominadores(as) no receber o gesto de servir.

Sei que muitos vão “torcer o bico” ao ler essa frase mas ao menos para mim, é o que acontece. Mesmo o mais sádico dos dominadores (as) sofrem ou são agentes de um processo de sedução que leva ao enamoramento versão BDSM.
O mais importante é assumir , e não vejo nenhum problema nisso, que somos enamorados de nossos(as) submissos(as) em diversos graus de envolvimento. Assim é a vida e não há porque negá-la.

PASTOREANDO NOS CAMPOS BDSMISTAS

Se não é tão ofensivo ao nossos pudores e conceitos que nos apaixonamos e nos envolvemos com nossos parceiros BDSMistas , vai ficar mais fácil a gente ver o grande contato que há do poema baunilha com os nosso processos de negociação e vivência dentro do BDSM.
Com certeza o “José” do poema é um homem poderoso em sua sutileza e na expressão do seu amor à personagem do poema. Não podemos perceber (ao menos eu não percebo) nenhum sinal de sofrimento ou de dor , ao contrário, transmite-se uma sensação de plenitude que faz com que a personagem viva em intensidade o bem-querer à ponto de colocar-se de “joelhos” ante ao objeto (ops!) de seu amor.
Como já disse anteriormente, a personagem coloca o seu amado em uma altar, há uma sacralização dele de forma inquestionável. A frase do poema “Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor”, vai além dos limites simplistas de uma relação amorosa e coloca no amado a potência de proporcionar não apenas a felicidade mas a “redenção” através dessa experiência, transcendendo os níveis “normais” de uma relação, tocando outra poetisa fantástica, Florbela Espanca, no seu fabuloso poema “Fanatismo” onde ela declara mais explicitamente: “Por que és como Deus, princípio e fim”.
Nesses casos, detecta-se no amado a capacidade de prover o “manjar dos deuses”, o “Maná do deserto”, donde obtém-se a graça (no sentido religioso) e o favor indispensáveis à plenitude de quem ama, portanto, legitimando o servir.

Ops! Cheirinho de BDSM no ar? Huuuuuuuuuum… Estou aqui curtindo-o! Cheiro doce da construção da submissão através da “exposição” (muitas vezes nem tão exposta assim) de um “plano de vôo” que faz subir aos céus, mesmo experimentando uma sessãozinha hard de spanking…rs…
Se o exposto está minimamente coerente, podemos escrever assim: “A relação D/s constituí-se de um processo de sedução onde o(a) submisso(a) coloca o seu Dominador(a) como o único agente que pode, não apenas usufruir de sua submissão, mas de justificá-la, legitimá-la e dar-lhe corpo.
Os cariocas como a Helena diriam: “Que responsa, mermão!!!” Pois é! Pois é! Não vou nem dizer que ser Dominador é mais fácil do que ser submisso porque sei que essa discussão não tem pé nem cabeça até porque , como diria Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, uma frase lapidar. No entanto, isso pode suscitar uma discussão (em outro lugar e momento) se os Dominadores(as) e submissos(as) sabem realmente com o que estão lidando, a responsabilidade e gravidade de cada gesto e/ou atitude tomada.
Se é verdade que a personagem do poema de Adélia é indiscutivelmente submissa e o José um Dominador, convém examinar algumas pistas do caráter da relação que constróem.

(continua)


Um comentário:

  1. Amar e seduzir é todo um discurso com possíveis explicações, cujo o ato em si dele ninguém consegue se ausentar. Ver Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes.

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