Pesquisar este blog / Search in our blog

sábado, 29 de agosto de 2009

Sade, o amador da crueldade (Paulo Francis)

O marquês de Sade fascina os nossos contemporâneos, como deixou perplexos os seus. Não se trata de pornografia, apenas. Até um adolescente sem experiência, depois de ler algumas páginas das fantasias eróticas de Sade, sente um certo cansaço e desapontamento. São tão incríveis a façanhas sexuais das personagens, que só uma sensibilidade irmã do autor poderia usufruí-las para fins de prazer. A ficção e a “filosofia” de Sade terminam por nos provocar efeito semelhante ao do humor negro, tal o excesso com que castigam a carne. Pessoalmente, acho-o engraçadíssimo e instrutivo, em doses homeopáticas, e maçante no todo. Duvido de sua capacidade de catequese. O hábito não faz o monge. Quando muito, consolida vocações.

Em meio à loucura (no sentido clínico figurativo do termo) de Sade, há, porém, agudíssimas críticas a natureza humana e a sociedade, amparadas numa vivência que tem certa coesão demoníaca. Sade era um diabo de inteligente. Na infância, mataram-lhe o pato de estimação. Sade comeu-o, na inocência, e vomitou-o ao descobrir-lhe a identidade. Ficou perturbado a ponto de perder a fome. Emagreceu tanto que a família pediu auxílio ao padre confessor. Este explicou ao menino as diferenças entre os homens e os animais, na versão católica. Segundo o cura, nossa alma imortal, criados que fomos à imagem de Deus, demanda o respeito à vida, enquanto os animais, coisas, morrem de vez. Sade achou a explicação estúpida (tinha 9 anos), respondendo que se os homens viviam melhor depois da morte, não lhe parecia pecado matá-los, ao contrários dos bichos, finitos na carne. O padre sorriu com superioridade ante a lógica da criança. Cabe a pergunta: qual é a graça?

Sade foi um revolucionário completo embora sui generis, pois seu campo de atividade não era o mundo social, e, sim, o individual. Hoje, ele é cristalino em sua simplicidade. Propõe o prazer como o objetivo absoluto da existência, o prazer físico total, ancorado na crueldade, que considera a força decisiva na e da natureza. Tinha estímulos de sobra para formular essa tese. Viveu no período de decadência vertiginosa da aristocracia francesa, entre Luiz XV e Luis XVI, sobrevivendo ao Terror, na fase intermediária da Revolução de 1789, a Napoleão Bonaparte (que o trancafiou no hospício Charenton), terminando sua carreira sobre o reinado de Luiz XVIII. É significativo que inspirasse idêntico horror a revolucionários e a reacionários. Sade, em vários escritos, não se cansa de ressaltar a hipocrisia de seus perseguidores. Napoleão I (Bonaparte já imperador), por exemplo, abominava-o, lembrando-se dele com asco, até no exílio, em Santa Helena. Sade, entretanto, nunca matou ninguém. Feriu prostitutas, promoveu bacanais onde o sexo era praticado na “marra”, assim por diante. Já Napoleão Bonaparte foi um dos maiores criminosos de guerra de todos os tempos. Sangrou toda uma geração européia em suas conquistas. Em termos de respeito à integridade física do próximo, também Robespierre e Saint-Just seriam os últimos a poder pregar lições de moral ao marquês. Era um varejista da crueldade perto desses tubarões do atacado.

Sade percebeu com muita clareza as iniqüidades do regime monarquista e conclamou o povo a atacar a Bastilha (onde estava preso). Passou dois terços da vida na cadeia. Punição justa? Seus hábitos, na aristocracia francesa, não eram originais. Os grão-senhores dispunham de legiões de meninas e meninos para satisfazê-los, sabe-se lá como. O problema de Sade é que ele escreveu sobre o assunto, glorificou-o. Quis transformar o que era vício secreto em filosofia. Trouxe à tona o mais arraigado tabu humano: o sexo. Se tivesse ficado quieto, mantendo suas práticas fora do prelo, entre quatro paredes, a História não lhe registraria a passagem.

Sade tem um faro praticamente infalível para as inibições sexuais do homem. Localiza-lhe as causas e conhece a fundo as imposturas de que nos valemos para descarregar os instintos quando nos negamos a expressão sensual. Foi precursor de Freud, de Wilhelm Reich e Norman O. Brown, os principais revolucionários da psicologia moderna. Se o diagnóstico é bom, porém, a cura é uma loucura. Nenhuma sociedade civilizada poderia subsistir nas bases propostas pelo marquês. Alguma forma de contenção tem de haver, caso contrário nos destruiríamos todos.

Tamanho é o poder do tabu sexual que ainda hoje Sade enche de susto os bem pensantes, aqueles a quem um traseiro ou um palavrão no palco atinge como ofensa moral, mas que aceitam como coisa natural a morte de 259 mil crianças (a estatística é da Cruz Vermelha) no Vietnã, sob napalm, as bombas e quejandos.

Nesse contexto, nada mais ilustrativo e divertido do que a passagem de Sade pelo asilo de Chaenton. O marquês pôs fim ao confinamento, ao descanso forçado dos pacientes. Organizou-lhes uma intensa vida cultural e social. Promoveu espetáculos de teatro (Peter Weiss usou o tema em Marat/Sade), concertos, ceias chiquérrimas a que compareciam celebridades e nobres de Paris. Os loucos passaram a seguir a moda, cuidando da aparência e dos trajes. Naturalmente, aconteceram casos de amor. O diretor do hospício, Sr. De Coulmier, era um esnobe e deu mão livre a Sade para poder freqüentar-lhe as festas. Já os médicos da instituição ficaram indignados, pois, segundo eles, os loucos estavam portando-se como “gente normal”. A carreira do marquês é marcada por ironias desse tipo.

Restou pouco da produção literária de Sade. Sua obra foi aprendida e queimada, principalmente pela polícia de Napoleão I. Os livros mais conhecidos: Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem; A Filosofia da Alcova; Justine ou as Desgraças da Virtude; Aline e Valcour, ou Romance Filosófico; A Nova Justine ou as Desgraças da Virtude, Seguida da História de Julliete, Sua Irmã, ou a Prosperidade do Vício. Os títulos, quase sempre, dizem tudo. A extensão de certos textos é proibitiva. Justine & Juliette, por exemplo, chega a quatro mil páginas. As orgias, não raro, sofrem longos intervalos, onde o autor nos ministra filosofia. Há coisas ótimas, aqui e ali. Sade antecipou Proudhon (e não Marx, como afirma erradamente Guy Endore no livro O Santo Diabólico, ainda assim uma das melhores obras sobre o marquês) ao dizer que a propriedade era um furto. Ele e Babeuf, na Revolução Francesa, estavam adiante de Hebert e de Robespierre, em radicalismo econômico.

A corrente de literatura moderna onde encontramos Céline, Norman Mailer, Artaud (no teatro) e Kafka (de alguns contos) não existiria sem Sade. Pena que ele escreva sem rigor seletivo e se entregue a pretensiosas e intermináveis divulgações. E suas orgias não têm, como já foi dito, a menor verossimilhança. O leitor sofisticado, diante delas, ri dos excessos de rococós (o que os americanos chamam “camp”) ou se entedia mortalmente, se tomá-las a serio.

É impossível falar de Sade sem debater a questão da pornografia em nossa sociedade. Na maioria dos países civilizados, a censura artística cessou de existir. Chegaram os juristas à conclusão que ninguém é forçado a ler ou a ver tais coisas, exceto em casos excepcionais. Tornou-se direito firmado do cidadão conhecer o pensamento de quem quiser. Em matéria de jurisprudência libertária, nada há a acrescentar.

Médicos e educadores discutem, porém se a pornografia exerce influência sobre a conduta humana. Os moralistas, é claro, querem proibi-la, porque se julgam capacitados a determinar o comportamento do próximo. Quem toma esta posição prescinde de discussão; é por princípio, contrário à discussão. Candidata-se a beleguim de ditaduras. O leitor, certamente, dispensa maiores comentários.

Há outros críticos menos intransigentes. Os chamados “assassinatos do pântano” na Inglaterra, há tempos despertaram comoção em alguns círculos intelectuais. Os criminosos torturaram e mataram crianças de maneira infame. Eram leitores devotos de Sade e disseram-se inspirados por ele. Pamela Hansford Jones, romancista e mulher do escritor, cientista e subministro de Wilson, CP Snow, escreveu um livro denunciando a facilidade com que obras obscenas caem na mão de qualquer um. O ensaio é inteligente. A autora inclui a arte da violência, excluída, em regra,das preocupações dos censores. Também George Steiner, um dos críticos mais eruditos da presente geração, descreve o delúvio de pornografia & violência como fator de corrupção dos costumes, maneiras dos próprios ideais humanistas que deveriam presidir nossa civilização.

Ninguém pode definir com certeza o efeito do consumo de Sade e semelhantes sobre todas as pessoas. Os assassinos do pântano deixariam de ser tarados, se nunca houvessem lido o marquês? Improvável. A evidência psicológica disponível sobre as perversões indica que estas se estruturam disso, pensando estímulos meramente externos, embora esses possam acionar anseios a que o indivíduo já estava predisposto.

É mais provável que a obscenidade seja um fator preventivo de taras, um substituto de extravazamento, assim como o palavrão e o insulto aliviam tanta gente da necessidade de atos brutais. Quem se sente sexualmente irrealizado encontra na pornografia um paliativo, um “ersatz” da realidade almejada. O próprio Sade demonstra o valor consolatório das fantasias. Quando pôde fazer matar a mulher quem mais odiava, sua sogra, Madame de Montreuil, terminou mandando soltá-la. Por causa disso, como “frouxo”, Robespierre jogou-lhe na prisão, acabando com seu cartaz de subversivo junto aos revolucionários franceses. Sade desforrou-se da sogra como personagem literária, submetendo a vexames requintados (e hilariantes). Quantos homens não sonham em dar tratamento igual às suas sogras?

Sade, a exemplo de muita gente boa, mentiu sobre suas aventuras sexuais. É impossível separar a lenda dos fatos. Sade permanece vivo, é como símbolo de uma atitude de hedonismo extremado.

Durante um século suas obras desapareceram da vista do público. Depois da guerra é que críticos voltaram-se para ele. Auschwitz e Hiroshima não podiam ser explicados inteiramente por formulações antigas, seja o clichê marxista da luta de classes, ou o “guerra é guerra”, entoado nas banalidades patrióticas de cada nação.

Sade, antes de Freud, via na violência social um resultado da repressão dos instintos. A maneira pela qual se propunha a liberá-los nada ficava a dever, em tese, aos crimes dos bravos guerreiros de todas as épocas. Nem por isso sua análise carece de utilidade, se bem que seu comportamento não ser vê exemplo.

O homem fisiologicamente harmonioso, funcionando na plenitude civilizada dos instintos, tornou-se objetivo da psicologia de “avant-garde” em nosso tempo. Sade, viajando imaginariamente ao pólo oposto, foi um terrível profeta desse novo homem, hoje apenas esboçado.

(Francis, Paulo. Sade um amador da Crueldade. Pasquim, no. 6, Agosto de 1969. Apud Jaguar & Sérgio Augusto (organizadores) Pasquim, Antologia Volume 1 – 1969 – 1971. Rio de Janeiro: Editora Desiderata, 2006 p.25 a 27)

2 comentários:

  1. Vim pra te visitar, Senhor, mas não vou comentar agora pq estou correndo pro trabalho. Este texto merece uma leitura mais cuidadosa, volto`depois.

    Só não resisti à trilha sonora deliciosa e tinha que deixar registrado já.
    Gostei!
    Amei!
    Adorei!

    Porque será que mexe tanto comigo???

    Volto depois. Besos de mel!

    *;-)

    ResponderExcluir
  2. Desculpe a demora em responder o seu comentário, caríssima Amar!
    Beijos respeitosos e saudações ao seu Senhor!

    ResponderExcluir

Os comentários são moderados. Não serão publicados cometários de conteúdo racista, homofóbico, discriminatório de qualquer tipo.
The comments are moderated. WILL NOT be published any commentary with racist, homophobic and discriminatory content against no one and no group.