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sábado, 18 de julho de 2009

Cela de veludo: considerações sobre as relações D/s à partir de um poema de Adélia Prado

Abstract

Adélia Prado is one of the top poets in Brazil. In her poetry she discusses the great tie between her and her lover called José, a love that reaveals some traces that can be found in the relationships anywhere, including those developed between partners in BDSM.
As in the BDSM relationships the vanilla couples(and vice versa) will show one of the partners in a submissive role and this devotions garantees both the legitimacy of the command as the fully expression of the submission.
The D/s submission , in this scenario, becomes a very important and pleasant experience, driving us to strengh the ties and continously increase our pleasure.


(Nota: esse texto foi originalmente publicado na comunidade "Desejo Secreto" do Orkut, no tópico "Projeto Ciranda", numa sugestão de reflexão à partir do texto de Adélia Prado , reproduzido abaixo. Por sua extensão, foi dividido em duas partes).

Para o Zé

(Adélia Prado)

(em Poesia Reunida, Editora Siciliano, S.Paulo, 1991, p.99)

"Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo,
estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Calma! Você não lerá um artigo acadêmico por dois motivos: aqui não é o espaço e não tenho cabedal para fazê-lo. Vou apenas tentar compilar algumas coisas que eu escrevei para ninguém ler e o tanto que está em minha cabeça à partir de algumas experiências D/s que vivo.
Porque chamar essa série de reflexões de “Cela de Veludo”? Primeiramente porque o poema lindíssimo de Adélia Prado trata muito de submissão e, como é (ou deveria ser) regra, uma submissão voluntária como pode-se facilmente notar. Em segundo lugar, porque é uma cela confortável, que não tem a intenção de provocar um dano físico ou mental de alguma monta.
Como acredito ter esboçado na minha primeira intervenção, o poema é reconhecidamente “submisso”, estando a palavra entre aspas por uma assunção de que no “diálogo amoroso” não deveria importar (ao menos idealmente) um exercício de poder explícito mas eventualmente construído na dinâmica das relações.
Tudo muito bem, tudo muito bom mas JB, o que tem isso a ver com o BDSM? - podem dizer os mais apressados. Apesar do que há de peculiar no relacionamento amoroso comum (baunilha?) e no relacionamento Dominador(a)/submisso(a)? Para mim ambos guardam, no fundo, grandes similaridades e igualmente grandes diferenças.
A primeira similaridade, ao meu ver, refere-se ao processo de sedução. Por mais que possamos (queremos?) negar, o processo de “negociação” é na verdade um processo de sedução baseado em características de personalidade pré-existentes e que começam a ser construídas/reconstruídas e/ou moldadas durante esse mergulho no mundo do fetiche.

Um parêntese: tenho visto muitas intervenções em várias comunidades, discutindo se a submissão é construída ou conquistada do submisso(a). Dentro da minha experiência, vejo que a submissão, no BDSM, é uma expressão sistematizada de algo que sempre esteve presente na personalidade do submisso, algo que os psicólogos e demais profissionais de áreas afins podem explicar com mais competência do que eu e acredito piamente que o mesmo valha para os Dominadores(as).
Isso ao meu ver, tem implicações fáceis de serem previstas mas que não tenho visto serem enunciadas: há um processo legítimo de “enamoramento” do Dominador(a) por seu submisso(a). Isso não é novidade? Ufa! Que bom! É novidade? Vamos expandir um pouquinho.
Deve dar calafrios em determinadas pessoas saberem que de repente se enamoraram de seus parceiros BDSM. Isso é rendição ao “baunilhismo”? De forma alguma.
Recorro ao meu “Velhíssimo Dicionário da Língua Brasileira” para achar a significação do verbo “enamorar” e encontro:

“ENAMORAR, v.t. Encantar; enfeitiçar; apaixonar; p. Deixar-se possuir por amor; apaixonar-se; enlevar-se”.

Uia! “Deixar-se possuir por amor”??? Caraca! Porque não “deixar-se possuir pelo desejo” ou “deixar-se possuir-se pelo fetiche” ou finalmente “deixar-se possuir-se pela entrega”? Será que invalida o argumento trocar as palavras? Ao meu ver, não, muito pelo contrário, porque deixar-se possuir é entregar-se (mesmo vocês senhores e senhoras Dominadores e Dominadoras!!!!!). No caso do submisso, essa entrega ocorre no universo do servir e no caso dos (das) Dominadores(as) no receber o gesto de servir.

Sei que muitos vão “torcer o bico” ao ler essa frase mas ao menos para mim, é o que acontece. Mesmo o mais sádico dos dominadores (as) sofrem ou são agentes de um processo de sedução que leva ao enamoramento versão BDSM.
O mais importante é assumir , e não vejo nenhum problema nisso, que somos enamorados de nossos(as) submissos(as) em diversos graus de envolvimento. Assim é a vida e não há porque negá-la.

PASTOREANDO NOS CAMPOS BDSMISTAS

Se não é tão ofensivo ao nossos pudores e conceitos que nos apaixonamos e nos envolvemos com nossos parceiros BDSMistas , vai ficar mais fácil a gente ver o grande contato que há do poema baunilha com os nosso processos de negociação e vivência dentro do BDSM.
Com certeza o “José” do poema é um homem poderoso em sua sutileza e na expressão do seu amor à personagem do poema. Não podemos perceber (ao menos eu não percebo) nenhum sinal de sofrimento ou de dor , ao contrário, transmite-se uma sensação de plenitude que faz com que a personagem viva em intensidade o bem-querer à ponto de colocar-se de “joelhos” ante ao objeto (ops!) de seu amor.
Como já disse anteriormente, a personagem coloca o seu amado em uma altar, há uma sacralização dele de forma inquestionável. A frase do poema “Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor”, vai além dos limites simplistas de uma relação amorosa e coloca no amado a potência de proporcionar não apenas a felicidade mas a “redenção” através dessa experiência, transcendendo os níveis “normais” de uma relação, tocando outra poetisa fantástica, Florbela Espanca, no seu fabuloso poema “Fanatismo” onde ela declara mais explicitamente: “Por que és como Deus, princípio e fim”.
Nesses casos, detecta-se no amado a capacidade de prover o “manjar dos deuses”, o “Maná do deserto”, donde obtém-se a graça (no sentido religioso) e o favor indispensáveis à plenitude de quem ama, portanto, legitimando o servir.

Ops! Cheirinho de BDSM no ar? Huuuuuuuuuum... Estou aqui curtindo-o! Cheiro doce da construção da submissão através da “exposição” (muitas vezes nem tão exposta assim) de um “plano de vôo” que faz subir aos céus, mesmo experimentando uma sessãozinha hard de spanking...rs...
Se o exposto está minimamente coerente, podemos escrever assim: “A relação D/s constituí-se de um processo de sedução onde o(a) submisso(a) coloca o seu Dominador(a) como o único agente que pode, não apenas usufruir de sua submissão, mas de justificá-la, legitimá-la e dar-lhe corpo.
Os cariocas como a Helena diriam: “Que responsa, mermão!!!” Pois é! Pois é! Não vou nem dizer que ser Dominador é mais fácil do que ser submisso porque sei que essa discussão não tem pé nem cabeça até porque , como diria Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, uma frase lapidar. No entanto, isso pode suscitar uma discussão (em outro lugar e momento) se os Dominadores(as) e submissos(as) sabem realmente com o que estão lidando, a responsabilidade e gravidade de cada gesto e/ou atitude tomada.
Se é verdade que a personagem do poema de Adélia é indiscutivelmente submissa e o José um Dominador, convém examinar algumas pistas do caráter da relação que constróem.

NO BALANÇO DAS TRÍADES



O poema me suscitou emoções muito dadas por fatos que me aconteceram dentro e fora do “meio”. Todas essas coisas, esses fatos, me fizeram ver que o amor e a submissão, o enamoramento e o domínio, são todas facetas distintas do mesmo processo.

Parece-me que algumas pessoas têm resistência máxima em admitirem-se nesse processo de sedução, conquista, realimentação/revisão das expectativas, renovação e inclusive a separação e o distanciamento. Pergunto-me porque e encontro uma resposta que para mim , respeitadas as opiniões divergentes, bizarra: temem os dominadores (as) que a sua autoridade seja solapada por mostrarem-se interagentes no processo que uniu Dominador(a)/submisso(a).

O poema de Adélia, nesse sentido, mostra um antídoto à essa visão torta: é através do sentir-se acolhida, aceita, legitimada que procedeu-se à submissão, à entrega e à sacralização que tornou-se indispensável para atingir-se o estado que fez da personagem uma cultuadora, cuidadora e devota de seu amado.

Talvez falte-nos , ou ao menos para alguns, a visão de uma pessoa em presença, fisica, icônica ou real (segundo o sentimento de cada um) , de um santo. Jogado de joelhos, não pede, implora pelo seu favor. Já presenciei em Igreja de minha cidade, uma mulher que atirou-se ao chão para humilhar-se e pedir uma cura.

A quem mais poderia se tributar tanta reverência e poder senão ao ser que poderia retirar-lhe de sua angústia e de devolver-lhe aquilo que perdera, no caso, a saúde?

A quem mais um(a) submisso(a) consciente de que sua felicidade está diretamente ligada ao ser aceita e legitimada em sua forma de sentir prazer, tributaria fidelidade, desvelo e serviço? Com certeza àquele(a) em quem reconhecesse tal capacidade e tal poder. Portanto, ao meu ver, o enamoramento e a dedicação são os únicos meios de chegar-se à tal devoção, necessitando de um empenho especial por parte do(a) Dominador(a) para que tal estágio seja atingido.

Ao ver alguns casais “BDSMistas” não tenho quaisquer dúvidas que ocorra algo assim. No entanto, se nem no “baunilhismo” isso é norma, não esperaria que fosse possível no BDSM que não tem, em essência, tanta diferença assim das práticas habituais, só tem um caráter um tanto diferente nas práticas.

Isso contempla uma das tríades que H. propôs tão bem, o “Nós dos Nós”. Lembro-me que ali ela pontua que as emoções transcendiam as dores e chegavam à unir almas em algo muito maior , unindo almas e corações. Perfeito!

Passei boa parte da tarde (estou escrevendo na noite/madrugada) pensando o que o masoquismo supostamente afetaria nessa construção que o poema propôs. Concluo que o masoquismo não aspira consumir-se em si , apesar de poder aspirar a isso eventualmente. No entanto, se prazer causa, carece e espera realimentar-se para tornar a ser satisfatório até quando isso não mais ocorra e transmute-se, eventualmente, em algo mais (ou menos).

Portanto, a concepção do “Nós de nós” está vinculado ao prazer, à dimensão criadora da vida. E a união só se legitima no prazer que aspira e na realização dele.

E o “Tocar as raias”? Será que poderíamos afirmar que “Tocar as raias” é um processo físico, de chegar aos extremos nas práticas? Todos sabem que não. Na verdade, mesmo a prática mais extrema não tem sentido nenhum se não vier secundada de uma profunda ligação erótico-afetiva.

A falta dessa percepção, na minha opinião, empobrece muito o diálogo D/s. Reduzir essa relação em um bate/apanha é empobrecê-la , sem com isso fazer qualquer condenação a quem se proponha a viver algo assim.

E é esse a grande lição que o poema aponta: a submissão talvez não necessite, necessariamente, das práticas mas do grau de sedução que um(a) Dominador(a) tem sob seu submisso(a) e vice e versa.

Alguém tem alguma dúvida que isso também aconteça no enamoramento mais “comum”? Quem confrontado com um(a) “adversário(a)” não empunha todas as armas para afastá-lo? Quem, tendo a “coleira” devolvida, o rompimento do pacto original, não se desestruture? Quem, em separando-se definitivamente do(a) amado(a) não perca o próprio significado de sua vida?

Para encerrar: a maior lição que esse poema nos dá é a da intensidade da entrega, seja no “baunilhismo” seja no BDSMismo. Isso deve inquietar ao nos instigar a pensar em que entrega e que Dominação estamos exercendo. Saber que os mecanismos são sutis e a prática não pode ser menos sensível à essa sutileza.

Transformar a realidade falsamente árida que o BDSM propõe para uma plenitude que o poema transborda. Algo para a reflexão. Desculpe se essa foi muito extensa.

Saudações à todos.

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